Mariam,
Espero que esteja bem e animada.
Querida Mariam, sinto-me igualmente ligada a si. E espero que possa sentir o abraço que lhe envio junto com essa carta.
Sua carta despertou em mim vários sentimentos e reflexões. Estou igualmente curiosa para ler mais da sua poesia. Os trechos partilhados na carta são notáveis pela força, verdade e beleza, tocaram-me profundamente. São poemas cortantes, duros de se ler, fazem a dor escorrer pelos olhos.
Minha querida, vivo agora um momento de saudades. Perdi a minha mãe recentemente e, depois de um período dificílimo, sofri um aborto espontâneo. Tornou tudo mais duro e difícil de superar. Se me pudesse resumir em uma palavra seria saudades, saudades eternas da minha mãe e do filho que tanto sonhei ter ao colo. Carregava o Asafe, o meu bebé, com a esperança de que me tornar mãe pudesse cobrir a ausência da minha querida mãe, Madalena Gonçalves. No final das contas, só tive mais motivos para chorar.
Escrevo-lhe essa carta triste. Peço desculpas por isso, não costumo ser uma pessoa triste. Pelo contrário, sou amiga do movimento e da alegria, da dança, da música e das cores, mas hoje sou um relógio parado, um rio seco, sou uma folha seca descartada da árvore que lhe deu origem.
Sempre fui muito conectada à minha mãe, éramos unha e carne. Tive também uma conexão especial com o bebé que meu corpo fabricou durante seis meses, falava com ele, lia poemas e anedotas para ele, fazia-lhe ouvir os clássicos da música angolana e adorava senti-lo vivo, fazia-me sentir mais viva ainda. Diz-se na minha terra que quando uma mulher dá a luz ela vem à luz com o filho, mas não se diz nada das mulheres que perdem os seus filhos no meio do percurso da maternidade. Estou desconcertada, ferida, não sei como começar essa carta para si. Só consigo escrever sobre o que sinto nesse momento. É a primeira vez que penso nisso em voz alta, que partilho esta dor com outra mulher e agradeço pela sua companhia. É como se estivesse aqui ao lado a enxugar minhas lágrimas, enquanto bato nas teclas desse computador. Fico a imaginar que poemas me cantaria para que a poesia pudesse ser um curativo em meu peito aberto, dói-me o corpo e a alma, dói-me existir. Não sei se culpo o meu útero frágil ou o péssimo sistema de saúde do meu país, que não olha para as questões ligadas à saúde reprodutiva da mulher.
Mariam, depois que a gravidez começou a se tornar complicada, optei por uma clínica privada. É assim que fazemos em Angola. Salva-se quem poder. Quem pode fugir ao caos dos hospitais públicos, gasta até o que não tem em clínicas privavas. No dia em que perdi o Asafe, dirigi-me a um hospital público próximo de minha casa para socorro, onde fui vítima de violência obstétrica. Enquanto eu me agoniava de dor e rogava para que salvassem o meu bebé, o médico de plantão não sabia explicar o porquê do aborto, disse-me arrogantemente o seguinte: «O teu corpo é incompetente, não consegue segurar um bebé até aos nove meses». Essas palavras não saem da minha cabeça até hoje. Depois do parto induzido com misoprostol, fizeram-me uma curetagem sem anestesia, disseram-me lá que o hospital não tem anestesista para as mulheres que sofrem abortos, apenas para as mulheres que passam em cirurgias mais complicadas, como a cesariana. Vi mais de trinta mulheres a aguardarem pelo seu momento de curetagem numa sala mal higienizada, que mais parecia um matadouro. Até agora tenho a imagem daquelas mulheres tristes e angustiadas, todas queriam ser a primeira e correr para casa fugindo do caos que existe na Maternidade Lucrécia Paim.
Mariam, aquele médico não estava interessado nos nossos sentimentos, não respeitou nossos corpos, não respeitou o momento e nem a nossa dor. Não tivemos nenhum acompanhamento psicológico antes ou depois. A verdade é que a dor de parto só é suportável pelo presente de se ter um filho ao colo, olhar nos olhos da criança que carregamos durante nove meses. Sentir aquela dor sem ser presenteada é traumático. A mulher angolana repovoou este país depois de tantas guerras e é assim que a tratam. O parto humanizado está reservado para quem pode pagar as clínicas privadas, que pertencem aos altos membros do governo. Para quem não pode pagar, o destino é aquele matadouro que não tem nem luvas, pelo que a paciente tem de comprar o material médico usado durante o processo. Fiquei uma noite na maternidade a ouvir o choro de recém-nascidos, sabendo que nenhum deles era o meu filho. A tristeza fazia-me desejar o abraço da minha mãe, que sempre me ajudou a melhorar em qualquer situação.
Mariam, o que me contou em sua carta e a situação que enfrento levou-me a pensar nas fronteiras entre as mulheres, em como elas nos separam, mas a luta por um lugar ao sol é um laço que nos une a todas. Em Angola, as mulheres estão separadas pelo status. As pobres esquecidas são o símbolo da mulher angolana, da sua força e dedicação à família. Essas mulheres marginalizadas são recordadas apenas quando chega o chamado “mês da mulher”, os retratos delas enchem as tvs e os jornais. Essas mulheres são chamadas “mamãs zungueiras”, elas percorrem quilómetros com quilos de sofrimento na cabeça, vendem de tudo, até a si mesmas quando surge um cliente. E há as afortunadas, as que vêm de boa família. Essas são financeiramente estáveis e/ou tiveram a sorte de frequentar uma universidade. Essas têm o direito a opinião no espaço público, às vezes os homens que mandam no governo têm surtos de solidariedade e decidem abrir vaga para umas quantas pré-seleccionadas ocuparem assentos no parlamento. E assim se podem gabar que as mulheres estão representadas. Mas não se deixe enganar querida Mariam, aquelas mulheres no parlamento não falam e não vêem, apenas ouvem e obedecem. Não levantam debates, não sugerem políticas públicas voltadas à mulher, a palavra de ordem delas é SIM ao que o governo liderado por homens hipócritas ordenar.
Minha querida, deixa que te conte, há uns quatro ou cinco anos, o parlamento angolano decidiu aprovar uma lei sobre a criminalização total do aborto e teve a aprovação das mulheres parlamentares e até do maior partido da oposição. Foram as mulheres da sociedade civil e algumas organizações feministas que protestaram ao ponto de conseguirem que a norma que penaliza o aborto tivesse algumas excepções, como em casos de estupro, em caso de risco à saúde da mulher ou caso de má formação do feto. Imagina que o debate sobre essa norma, no parlamento, era dominado por homens. Não se ouviam as vozes da representação da mulher que o nosso governo tanto se gaba. Discutia-se o aborto sem se falar das condições de saúde materno-infantil, das mulheres que morrem nas maternidades sem justificação, da falta de responsabilização das equipes médicas, da violência obstétrica, da falta de materiais nos hospitais, do direito a um/a ginecologista, da fuga à paternidade. Tudo isso é muito duro para nós, mulheres.
“Agora as ruas da minha cidade – da qual sinto tanta falta – são um reino exclusivamente masculino”. Esse trecho da sua carta marcou-me muito, consigo ouvi-lo ecoar dentro da minha cabeça, enquanto escrevo. Faz-me também pensar na real situação da mulher angolana, em relação ao seu papel social e no relacionamento que temos umas com as outras. Longe de todas as privações a que as mulheres afegãs estão sujeitas, em Angola há a chamada “invisibilidade de mulheres na história”. O nosso país tem um percurso de lutas e guerrilhas no qual as mulheres participaram directamente, tiveram destaque, estiveram na frente de combate, algumas foram vítimas de abuso sexual por parte de quem orquestrava a guerra, outras foram assassinadas de forma macabra em fogueiras ou enterradas vivas, mas ainda assim – na história recente do meu país – há um silêncio ensurdecedor sobre a participação da mulher no alcance da independência e da paz. Essa falta de representatividade da mulher angolana na história trouxe um vazio grande na sociedade feminina e acabou tornando as mulheres mais subservientes, mais obedientes, dando ao homem um lugar de hegemonia.
Mariam, as mulheres angolanas carregam demasiados fardos, delas depende a sobrevivência das famílias: a instituição social mais importante, em todos os níveis, da nossa sociedade. São elas que enfrentam um sistema de saúde precário, correm para os hospitais públicos com as crianças sem a presença do pai na maior parte das vezes. Enfrentam o pobre sistema de educação, eu mesma fui alfabetizada pela minha mãe, ensinou-me a ler e a escrever, todo o amor e respeito que tenho pelas letras e pelo conhecimento é resultado da dedicação dela. O meu pai demitiu-se das suas responsabilidades quando eu tinha apenas dois anos de idade. Hoje, com 27 anos, ainda sou um corpo inundado de espera dos afago do meu pai.
As mulheres sentem as falhas do nosso sistema político na pele e no útero, cada vez que a fome lhes rouba um filho. São o rosto da pobreza que mora nesta terra, elas cumprem com rigor o dever precioso de ser mãe. Em meio a esta realidade dura que te conto há outros episódios que a mente se encarregou de esquecer por serem duros demais.
Avizinham-se as eleições e estamos em momento tenso de campanhas eleitorais e promessas vãs. Nem em promessas se falam de políticas públicas para as mulheres, somos sempre o tão querido e preservado “vaso frágil” que suporta as dores do mundo.
Cíntia