Na Cor Certa *
Olho-me ao espelho e é como se me reconhecesse de outras vidas, ao mesmo tempo que não reconheço o que até pouco tempo fui nesta.
Os meus olhos são os meus olhos porque me vejo, mas já não são os olhos com os quais eu nasci. Na verdade, eu detestava aqueles olhos. Demasiado comuns, olhos castanhos, quem quer ter olhos iguais a todo o mundo? Não eram meus. Os meus estavam dentro de mim como se se recusassem a brotar. Às vezes fechava-os com tanta força como que para obrigá-los a mudar.
Sentia uma dor aguda quando via mulheres com olhos azuis na televisão, revistas e no instagram. Era como se elas me tivessem roubado o que eu sempre fui. O que era suposto ser, não aquilo que os meus pais tinham nascido.
Constantemente me perguntava porque eu havia nascido daquela maneira. Odiava-os por me terem nascido assim. Não era eu. Aquele monte de massa muscular, em forma de corpo. Era simplesmente uma anatomia que me carregava, não era o meu corpo. Não era eu.
Agora sim, esses olhos profundamente azuis, como se estivesse um mar dentro de mim, navegando junto com as minhas vivências. Estes sim, são os meus olhos. Agora tenho-os sedutores. Os homens olham-me e ficam inquietos. É como se o meu olhar os transformasse em pedra. Imóveis e atónitos. Dá-me poder. Gosto.
Outro dia, o Ndala virou-se para mim incrédulo e confessou:
– Todos os dias tenho de me acostumar com esse tu com quem me deparo quando acordo. És tu, mas não és tu. Acho que devo é me habituar.
Eu sei que é difícil para ele. Conhecemo-nos ainda era outra. Eu detestava tudo em mim, mas ainda assim ele se apaixonou. Acredito piamente que se apaixonou pelo que eu era. Não pelo que ele olhava. Eu não era aquilo.
Agora sim, sou eu. Toco o meu rosto e sinto o nariz delicado. Pequeno e arrebitado, tal como sempre imaginei. Já não tenho mais aquelas aberturas largas. Com a ponta abatatada que me envergonhava. Meu Deus, como pude nascer assim? Agora tenho a ponta nasal estreita, o dorso em linha recta e a largura apropriada. Tenho o nariz perfeito! O que importa se às vezes escorre? Pouco importa que eu pareça sempre constipada. Melhor constipada do que com aquele nariz demasiado africano que eu tinha.
Pena que os filhos que saírem do meu ventre não sairão como eu. Eu também queria filhos assim, mas como eu era não tinha como conquistar um homem como actualmente sou.
Mas eu acho que o que eu mais amo hoje é este cabelo cor de ouro. Tão sedoso, tão comprido, passo a escova e me sinto uma verdadeira rainha. Comprei até um espelho de camarim, com luzes e uma bancada com tudo o que é maquilhagem à minha disposição. Livrei-me do breche e do TCB. O meu cabelo anterior parecia parafuso, era enrolado, ruim e seco. Nem dava para fazer um puxinho em condições. Por isso, não vivia sem produtos para alisar. Ou perucas. Odiava os tempos de chuva. Ter de andar com sacos na cabeça para não molhar o cabelo e ficar novamente ruim.
Usava pente. Há uma diferença abismal entre o pente e a escova. O pente parece arma de guerra, para tentar consertar a confusão que é aquele tipo de cabelo. A escova é um utensílio de beleza. Serve para mimar os cabelos e reforçar o quanto são lindos. Eu amo os meus novos cabelos. São sinónimo de feminilidade e beleza. Pouco importa se não nasceram comigo. Agora os tenho.
Mas o que eu realmente detestava era aquela cor. Parecia alcatrão, era tão preta que se confundia com o azul escuro da noite.
Os meus pais amavam. Diziam que eu era como estórias cantadas ao luar. Minha cor embalava, era um preto com tons de azul a depender da luminosidade. A minha mãe adorava o meu sorriso, porque o preto das gengivas contrastava com o branco dos dentes. Duas cores compactas, diferentes uma da outra. Que não se misturavam e que, no entanto, transmitiam uma beleza desconcertante.
Eu, por outro lado, não gostava. Bonito ou não, não era meu, não era o meu corpo, era de outra pessoa. Eu era branca. Presa num corpo preto. Eu nunca me identifiquei com nada: do meu corpo à cultura.
Não acredito que os meus antepassados foram negros, ancestrais, como eles dizem. Não tenho nada contra pretos. Só não sou uma deles. O meu sangue é branco, é assim que eu me sinto.
Por isso, fiz das tripas coração para ter a minha verdadeira cor. Quando era pobrinha, comprava cremes para clarear a pele, mas não ficava satisfeita, deixavam-me alaranjada e as dobras dos dedos continuavam pretas. Ficava atenta a tudo que era tendência de cremes para a pele.
Uma vez cheguei a dever 500.000 kzs à prima Kassongo, sendo que eu ganhava apenas 50.000 na época como gerente de uma boutique, que de boutique não tinha nada, era uma loja de roupas que a dona ia ao Asa Branca e aos Congolenses[1] comprar as roupas, lavava, engomava e dizia que vinha de fora, acho que até hoje acontecem dessas coisas.
Quando conheci o Ndala estava já sem esperanças, parecia que nunca mais teria a minha verdadeira pele, a minha cor, sentia-me sufocada, como uma pessoa claustrofóbica presa num cubículo, o meu cubículo era aquele corpo, que não me deixava respirar. Foi a época em que eu mais evitei ver o meu reflexo. Preferia imaginar-me, fantasiar o que era do que ver de frente a realidade.
Graças a Deus Ndala era rico e gostou da miúda que eu era na altura. Com os meus vinte e poucos anos. Talvez ele tenha sido o meu presente. Aquele que me daria de volta a mim. Foi difícil convencê-lo de princípio, mas ele sempre me amou e sempre fez tudo por mim.
Não quis ir ao Brasil. Sim, lá a indústria estética está avançadíssima. Mas Estados Unidos são Estados Unidos e os Realitys Shows sobre cirurgias plásticas eram os meus favoritos quando não era o que sou hoje. Fomos para Los Angeles. Foi difícil convencer os médicos a me trocarem de pele. Muitos acharam uma loucura. Outros viam como antiético. Começava a desvanecer-me: se no primeiro mundo não era possível, onde sería?
Até que finalmente, alguém tão ousado quanto eu aceitou o desafio de me tornar branca: o Dr. Youssef! Ele olhou para mim e confidenciou que a minha pele estava danificada pelos anos em que usei cremes de clarear sem acompanhamento médico.
Mas que o processo que podia reverter a situação seria o peeling químico, mas em sessões intensas, pois eu não queria apenas clarear a pele. Eu queria mudar de pele. Não queria ser uma preta mais clara. Eu queria ser branca.
Sempre me identifiquei como branca. As pessoas acham estranho. Quem me conheceu anteriormente reluta em acreditar. Mas eu não me importo. Temos o direito de sermos o que quisermos ser.
Fui removendo a melanina em cada procedimento. Foi doloroso, mas ficar bonita requer dor. E eu queria o meu corpo de volta. O corpo que me foi negado à nascença.
Sim, hoje em dia tenho de ter alguns cuidados. É impossível ficar exposta ao sol, pois não tenho qualquer protecção na pele. Mas é por isso que tenho dinheiro, todos os espaços da minha casa são climatizados, o ambiente perfeito para que a minha pele não seja danificada.
Confesso que tenho saudades de sentir o sol a beijar-me a pele em dias de verão. Mas não há nada pior do que não te sentires tu mesma. Estar no corpo errado, ninguém nunca vai entender isso, porque ninguém viveu esses anos todos como eu.
Diminuí também os lábios, eram desproporcionais ao meu rosto, embruteciam-me, demasiado chamativos, pareciam um monte de carne, colocados de forma desmazelada no meu rosto. Deus devia ter pressa. Era muita demanda no dia em que me fez, por isso me despachou.
Mas mantive a bunda, não há nada mais excitante que uma branca com cu de negra, é a única vantagem daquilo que eu chamava de meu corpo.
Mudei as auréolas dos seios, queria-os rosa. Agora são tão alvos, eles e a vagina rosada – faz lembrar o paraíso. Gosto de fazer amor com o Ndala olhando-me ao espelho, para admirar a obra prima em que me transformei. Não há nada mais excitante que uma boceta rosa. Os homens adoram. Menos o Ndala, ao que parece. Não entendo esse meu marido.
Uma vez olhou para mim e disse:
– Mbaquinha, eu não me sinto confortável agora ao te tocar. Parece que toco uma criança. És demasiado frágil. Demasiado depilada. Tu sabes que na nossa tribo gostamos de mulheres com pelos.
Cortei-lhe logo, porque se é algo que eu não queria voltar a ser chamada é de Mbaquinha. Tenho repulsa a este nome. Agora chamo-me Ester. É meu nome social. Quando alguns familiares me chamam de Mbako ou Mbaquinha relutantemente, não lhes respondo.
Este homem é muito ligado a essas coisas de tradições e tribos. Não parece ser rico. Eu já não sou mais Mungangela, aliás, nunca me senti. Quando viajámos para Paris na nossa Lua de mel, eu me senti em casa. Os meus antepassados são de lá, tenho a certeza. Seres intelectualmente superiores, iluministas! Ignorei o facto de Luanda e Paris terem o mesmo cheiro. Acredito que Luanda cheire mais a urina do que lá. Aqui são naturalmente porcos. Gentios, a matumbice corrói-lhes o sangue. Lá não. Há urinóis por todos os lugares. É outro mundo.
Hoje, preparo-me para mais uma viagem a Los Angeles, para uma revisão. Ultimamente tenho tido pintas estranhas na pele, até mesmo verrugas. É estranho, mas não deve ser nada grave. Nada que o Dr. Youssef não resolva. Nestas viagens prefiro ir sempre com o Ndalito. Amo-o apesar de sermos tão diferentes. Ele me salvou e dedicou-se a mim como um pai, um amigo, um companheiro. O voo é às 18h. Com uma paragem em Dubai, vou aproveitar para comprar um Mcbook novo. Roupas eu compro em Paris, prefiro.
* Este texto pretende ser uma sátira ao complexo racial e não pretende satirizar outras experiências de não-dualidade ou questões de identidade sexual.
[1] Asa Branca é um mercado aberto em Luanda onde se vende de tudo, desde roupas a produtos alimentares. ‘Congolenses’ é um termo usado em Luanda para se referir a vendedores de rua.